Seu Adelio

M. Neto
2 min read2 days ago

--

Seu Adelio vive na Frequesia do Ó desde que nasceu.

Estudou até o primário, mas depois fez um curso técnico de mecânica.

Trabalhou a vida toda para os outros.

Tem 60 anos de motores e 75 de Corinthians, diz e sorri com a boca cheia de obturações nos poucos dentes que restaram.

Poderia ter sido um pouco mais fácil tudo isso. Poderia ter sobrado um dinheirinho a mais no final de cada mês. Mas vai reclamar de que o seu Adelio?

Tem seu sobrado geminado, meio mal tratado, porque desde que sua mulher morreu e a Dirce casou, moram só ele e o Biro-Biro, um cachorro preto como a noite, o que torna o nome uma ironia.

Seu Adelio tem um carro. Um Santana que está uma joia, porque foi ele quem reconstruiu, na ponta dos dedos.

Tem também uma moto, largada no fundo da garagem, que ele recebeu como parte de pagamento por uma retífica. Está lá, largada, porque “moto não é carro”, ele sempre diz.

Por dentro a casa é simples.

Uma TV na sala, grande até. Da Samsung. Um luxo que ele se deu para assistir aos jogos do Corinthians.

A cozinha tem de tudo, até uma air frier que a Dirce deu de Natal em 2023, mas ele não sabe para que usar.

No quintal o Biro-Biro está sempre esparramado, feito um tapete.

Não foi nessa casa que seu Adelio cresceu, mas foi nessa mesma rua.

Acontece que hoje, quarta-feira, seu Adelio não tem mais nada.

A chuva de terça levou tudo.

Uma terça qualquer, nos seus 75 anos, levou tudo que seu Adelio tinha.

O Santana amanheceu na escadaria da Igreja, três quadras lá para baixo.

A TV, flutuava no lugar, com a tomada como âncora.

O primeiro andar da casa tinha mais de um metro e meio de água e lama.

Um pouco antes das 6 da manhã, com a calça arregaçada até o joelho, seu Adalto estava dando um entrevista para a CBN.

Quem ouvisse apenas a sua voz, diria que ele tem 35, 40 anos no máximo.

Só seu rosto mostra os quase 80. E como quem já viveu quase de tudo, seu Adelio narrava sem tremer a voz, sem se emocionar, a tragédia de ontem. Listava o destino de cada um de seus bens. O carro, a TV, a geladeira, o sofá.

A reporter, uma jovenzinha disposta a arrancar lágrimas para valorizar a matéria, perguntou: “o senhor perdeu tudo, então?”

Seu Adelio não respondeu.

Ficou olhando para o microfone enquanto imaginava o que “tudo” significava.

Pela primeira vez, desde que a chuva começou, se deu conta que nada mais seria como antes.

Mesmo assim, para decepção da moça, seu Adelio não chorou. Apenas respondeu que sim, tinha perdido tudo. E baixou a cabeça.

Mas ela não desistiu:

“E o Biro-Biro?”

--

--

M. Neto
M. Neto

Written by M. Neto

“Nothing before the ‘but’ matters.” - Shakespeare

No responses yet